- Ricardo Lessa
Nova regra mira influenciador e ‘big tech’.
Proposta de portaria deve ser encaminhada ainda este mês pela titular da Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), Juliana Domingues, à consultoria jurídica do Ministério da Justiça.

Regras mais duras para publicidade infantil, influenciadores mirins e grandes empresas multinacionais de tecnologia serão incluídas na proposta de portaria a ser encaminhada ainda este mês pela titular da Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), Juliana Domingues, à consultoria jurídica do Ministério da Justiça.
A ideia é atualizar a legislação, dos anos 90. A secretária propõe que as novas regras sejam transformadas em portaria para ação imediata e depois discutidas como projeto de lei no Congresso.
Mesmo antes de publicada, a nova regulamentação já causa polêmica entre entidades que defendem os direitos das crianças de um lado e os anunciantes de outro.
Antes do Natal, em chamada pública, a Senacon expôs as principais ideias da proposta a ONGs, ao Conselho Nacional de Auto Regulação Publicitária (Conar), entre outros interessados.
Entidades como a Alana, uma das mais atuantes na defesa de direitos infantis, alegam que as leis brasileiras são suficientes e a publicidade para crianças até 12 anos deve ser simplesmente abolida. Já anunciantes e publicitários defendem a atualização.
O mercado de anúncios publicitários para crianças é estimado em US$ 140 milhões na América Latina e US$ 68 milhões no Brasil, segundo cálculos da Kidscorp, empresa de marketing digital para crianças. Nos Estados Unidos chega perto de US$ 1 bilhão.
Na América Latina e no Brasil a participação das crianças em discussões sobre no que gastar o dinheiro da família é importante. A opinião dos filhos é levada em conta na compra não apenas de brinquedos. Crianças influenciam o consumo de música, alimentos, celulares e até carros (ver tabela ao lado).
Para o advogado Pedro Hartung, coordenador do grupo sobre publicidade infantil do Instituto Alana, a resolução do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e Adolescente (Conanda), de março de 2014, não deixa dúvidas: “Considera abusiva qualquer ação mercadológica dirigida à criança com intenção a persuadi-la.”
Aposição brasileira ganhou elogio da Associação Americana da Pediatria, em artigo de julho de 2020 sobre publicidade digital para crianças. Os pediatras ressaltam que só a partir de 12 anos, as crianças passam a ter discernimento para saber o que é propaganda e o que é divertimento. A partir de 2 anos, entretanto, ela já consegue associar personalidade conhecida a um produto.
Explorar essa vulnerabilidade é inconstitucional, contra o Estatuto da Criança de Adolescente, diz Hartung, apoiado nas resoluções dos conselhos internacionais de médicos, nutricionistas e psicólogos. Eles apontam danos irreversíveis na formação das crianças, levando a obesidade, alcoolismo, tabagismo, práticas ambientais erradas e modo de vida sedentário.
O Conselho Nacional de Auto Regulação Publicitária e a Senacon acreditam, entretanto, que a evolução das mídias digitais e do poder econômico das plataformas multinacionais requerem atualização da regulamentação. Até para conseguir a adesão de todos os atores envolvidos em publicidade.
“Os procedimentos judiciais são lentos e as multas muito pequenas para o tamanho do negócio atual’, diz Juliana Domingues. O último processo condenando uma empresa por publicidade abusiva a crianças, no âmbito da Senacon, é de 2013, terminado em 2019, com R$ 150 mil de multa contra a empresa Couro Fino, por “erotizar as crianças”. A empresa teria usado vestimentas de adultos em peças infantis, segundo o processo.
Para Juliana Nakata Albuquerque, diretora e responsável pelo Conselho de Ética da Conar, o que as agências publicitárias nacionais vêm fazendo é um alinhamento com as melhores práticas definidas na Europa e nos Estados Unidos: “A nova regulação se torna mais necessária depois do crescimento do uso das mídias digitais por crianças durante a pandemia".
O Conar divulgou uma cartilha dirigida especialmente a influenciadores mirins. Muitos deles experimentam ou desmontam produtos, sem alertar que se trata de mensagem publicitária para a qual foram contratados e são remunerados.
Além disso, há preocupação com a coleta de dados sobre as crianças, o que facilitaria o direcionamento de publicidade para o gosto de cada uma.
Essa é uma atividade totalmente proibida, segundo Demian Falestchi, CEO da Kidscorp, que se relaciona com 200 anunciantes e atinge cerca de 200 milhões de crianças na América Latina. Faletschi diz que as leis rígidas para publicidade infantil devem ser cumpridas e apresentam oportunidades de negócios. Entre seu clientes a Kidscorp tem Lego, Kellogs, , McDonalds, Disney, Warner e Danone.
“Nosso papel é orientar as empresas que naveguem de modo seguro pelos caminhos delimitados pela legislação de cada país”, diz o executivo. Para ele, a questão não é discutir a necessidade de publicidade para as crianças, mas ajudá-las a criar vínculos com a verdade. “Estamos lidando com os seres mais criativos da terra, queiramos ou não eles têm acesso aos debates que estão na internet, aos protestos, vão aprender a interpretá-los mais cedo”.
Para a diretora do Conar, a publicidade infantil deve deixar muito claro e ostensivo o que é propaganda e o que é entretenimento. Separar o que é opinião e o que é merchand. “A criança deve ser protegida sim”, diz Juliana Albuquerque. A regulação, argumenta, é melhor que a proibição. Segundo ela, o simples veto acaba provocando um desejo mais forte pelo proibido. Lembra ainda que o conteúdo publicitário acaba financiando os outros nas plataformas, como os educativos e os sem objetivo comercial.
A regulação, argumenta, é melhor que a proibição. Segundo ela, o simples veto acaba provocando um desejo mais forte pelo proibido. Lembra ainda que o conteúdo publicitário acaba financiando os outros nas plataformas, como os educativos e os sem objetivo comercial.
O Conar recebeu em dezembro a filiação do IAB, (International Advertisment Bureau), que reúne as grandes plataformas digitais.
Ela espera, que mesmo as chamadas “big techs”, como Google, Facebook e Amazon, venham a aderir às regras estabelecidas pelo Conar e pela Senacon. “Tem havido aproximações”, comenta.
Muitas delas já estão sendo enquadradas nas exigências estabelecidas pela União Europeia e pelos Estados Unidos.
O Google, dono do YouTube, recebeu multa de US$ 170 milhões, da Federal Trade Commission americana, em 2019 por violação ao direito de privacidade de crianças.
Já o Facebook concordou em pagar US$ 5 bilhões para sustar uma investigação sobre suas políticas de privacidade em relação ao usuários (crianças ou não).
A União Europeia divulgou no final do ano passado que estuda multas contra Google, Amazon e Facebook, por políticas de abuso à privacidade. Grandes anunciantes, como Coca-Cola e Procter & Gamble, se comprometeram a sustar a publicidade de seus produtos ou adaptá-los para crianças.
* Artigo escrito pelo jornalista Ricardo Lessa no jornal Valor Econômico.